terça-feira, 25 de novembro de 2014

O REQUERIMENTO - CONTO COMPLETO

            O professor Mário era um docente que todos considerávamos ser um Stor fixe. E porquê? Porque, se, logo na aula de apresentação, nos obrigava a escrever, no caderno da sua disciplina, as regras de conduta da sala de aula, tais como, entrar ordeiramente e em silêncio, não mascar pastilha elástica, não entrar com o boné ou chapéu ou capuz a tapar a cabeça, não entrar na sala a comer ou a beber sumos, sentar no lugar de acordo com a planta estabelecida pelo diretor de turma, depositar o telemóvel ou outro dispositivo eletrónico numa caixa que ele arranjou, senão o mesmo seria de imediato apreendido e entregue na direção, caso ele o apanhasse a ser utilizado, respeitar os colegas, não utilizando atitudes de agressão física tal como o “bullying”, comportar-se corretamente no seu lugar com a postura direita e não como se estivesse num sofá de casa, ou na mesa de um café, levantar o braço quando pretendesse fazer uma pergunta, com a finalidade de tirar dúvidas, sobre uma questão da matéria de aula, não se levantar do seu lugar, nem que fosse para deitar alguma coisa ao lixo, não agarrar no giz do quadro, parti-lo aos bocadinhos, para depois atirar aos colegas, ou fazer aviõezinhos de papel para enviar recadinhos aos colegas da outra extremidade da sala, estas duas últimas advertências até seriam passiveis de expulsão da sala de aula e ida para a sala de estudos com uma tarefa específica e com uma posterior participação disciplinar, não permitir perguntas, nem conversas de circunstância ou sob qualquer pretexto, com qualquer colega, nem mesmo àquele que se encontrasse ao seu lado, atrás ou à sua frente, não usar linguagem imprópria, utilizando palavras do vitupério, impropério, vernáculo e do calão, palavras que desconhecíamos e que nos explicou serem no fundo aquilo que designávamos de “asneiras” ou “pecados” para os mais católicos.
            Sem que fosse necessário chamar a atenção para a falta, todos tínhamos a obrigação, logo no início da aula, de retirar da mochila, o caderno e o manual escolar bem como o porta lápis com a caneta, o lápis e a borracha, para passarmos os apontamentos necessários, e, finalmente, estarmos atentos às explanações, por ele dadas, dos temas referentes às matérias letivas, tirando os devidos apontamentos e resolvêssemos as fichas de trabalho, bem como as atividades que ele apresentava para resolver na aula, ou como trabalho para casa. Tudo isto dizia ele, que eram regras que já tínhamos a obrigação de conhecer e devíamos seguir, fazendo parte do estatuto do aluno e se não fossem cumpridas, àquele que prevaricasse, outra palavra erudita que desconhecíamos e que ele explicou o que era, ele teria de tomar medidas, uma das quais era ir ao gabinete do Diretor com uma participação da ocorrência.
            Foi logo nessa primeira aula de apresentação que o Filipe, o mais atrevido da turma, perguntou, no caso de precisar de ir à casa de banho, como era preciso fazer. O Stor respondeu logo que tal não era permitido. À resposta, o Filipe, atrevido como sempre, voltou a questionar o Stor, perguntando-lhe, e se estiver muito aflito, faço nas calças? Esta pergunta gerou logo o riso geral dos colegas da turma, ao que o Stor, muito sério e com cara de poucos amigos, respondeu de imediato, que não via onde estava a graça pela atitude do Filipe e que aqueles risos eram sinónimo de comportamento errado por parte da turma, sendo como tal passível de participação, estando todos a esquecer-se das regras que tinha acabado de enumerar. Seguidamente, quando os ânimos serenaram, o Filipe levantou o braço, esperando que o professor lhe desse atenção, e voltou a fazer a mesma pergunta depois de pedir desculpa, pois não pretendia com a sua atitude provocar o riso geral da turma.
Foi então que pela primeira vez ouvi um professor dizer tal coisa. Se o jovem estiver muito aflito e precisar de sair da sala de aula, para ir à casa de banho e só nessa circunstância, então terá de fazer um requerimento. Um requerimento? Perguntou de imediato o Filipe. O que é isso? Ao que de seguida o Stor respondeu. Por definição um requerimento é um documento oficial utilizado para obter um bem, um direito, ou uma declaração de uma autoridade pública. O requerimento é um pedido dirigido a uma entidade oficial, organismo ou instituição do Estado através da qual se solicita a satisfação de uma necessidade ou interesse. Esse documento deve ser formulado por escrito e conter as seguintes indicações: Designação do órgão administrativo a que se dirige; Identificação do requerente pela indicação do nome, estado civil, profissão, morada e número de contribuinte; Exposição dos factos em que se baseia o pedido e, quando tal seja possível ao requerente, os respetivos fundamentos de direito; Indicação do pedido em termos claros e precisos; Data e assinatura do requerente ou de outrem a seu rogo, se o mesmo não souber ou não puder assinar, devendo dar-se especial atenção ao tratamento dispensado às autoridades. Constando tal tratamento do requerimento, são habituais as designações de Excelência, Excelentíssimo, Meritíssimo, Ilustríssimo, de acordo com os casos. Procedendo assim, de imediato, para podermos ir à casa de banho ou para podermos sair da sala de aula, fosse qual fosse a justificação, fez-nos escrever no caderno o tipo de modelo que devíamos utilizar, informando que o tratamento para o Stor era por Excelentíssimo.
A partir da aula de apresentação, de cada vez que algum de nós pretendia sair da sala de aula, porque elas eram uma tormenta, estarmos ali fechados durante noventa minutos a ouvir o Stor falar e a fazer-nos tirar apontamentos e a resolver as fichas de trabalho, fazíamos um requerimento, de acordo com o modelo que ele nos tinha feito escrever no caderno da disciplina. Depois de lhe ser entregue, com o devido respeito, o respetivo requerimento corretamente preenchido e que lia atentamente, o Stor passados alguns minutos, deixava-nos sair da sala, apenas por cinco minutos no máximo, tempo que o Stor cronometrava no seu relógio de pulso. Mas as saídas da sala de aula também tinham regras, mesmo com requerimento. Só podíamos sair no máximo duas vezes por período e caso atingíssemos esse máximo, teríamos então de negociar com um dos colegas o seu direito, prescindindo ele do mesmo. Foi interessante ver colegas a negociar, com requerimento em nome deles as idas à cada de banho e no fim do ano letivo o Stor Mário apresentou-nos a estatística das idas à casa de banho ou saídas da sala de aula, pois alguns de nós nem tínhamos vontade de urinar sequer. O que queríamos era um simples intervalo de cinco minutos naquela seca de estarmos fechados numa sala durante noventa minutos seguidos. Às vezes ele desconfiava, de um ou outro colega, de que não queria ir à casa de banho e então nesses casos pedia a uma das funcionárias em serviço no bloco que verificasse se o nosso colega ia mesmo à casa de banho, ou se o que pretendia era pura e simplesmente dar uma volta pelos corredores da escola, ou então ir ao bar dos alunos. Ele ficava danado nessas alturas, pois dizia que, nesse caso, explicassem no requerimento aquilo que verdadeiramente pretendiam, o que nós nunca fazíamos, pois se o fizéssemos ele não nos daria deferimento. 
Na continuação do ano letivo, o Stor Mário, que ao princípio se apresentou como um austero ditador, foi-se tornado mais flexível, exceto na exigência dos requerimentos e, se houve um ou dois caos de falta disciplinar, de um ou outro colega, todos o respeitávamos dentro da relação docente, discente e foi com imensas saudades que, no ano letivo seguinte, o vimos partir para outra escola. Nunca mais soube dele, mas ele deixou-nos a todos uma marca que nunca mais esquecemos, aprender pela primeira vez a fazer um requerimento, um modelo de burocracia que pela vida fora, tantas vezes tive de utilizar, para solicitar a alguém da administração pública, algo que nos pertencia por direito.

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